domingo, 16 de agosto de 2009

O POVO E A SUA POESIA

Uma simples quadra popular constitui por vezes, e muito melhor do que alguns trabalhos de tese, o retrato mais fiel do temperamento e do carácter do nosso povo ( sociedade civil como agora lhe chamam os media ).

Das questões de amor e dos desenganos; da árdua saga do trabalho rural; das queixas veladas e "recados" ao patrão; da amizade e do orgulho de se ser quem se é , tudo distingue a poética e a filosofia próprias do povo alentejano, cujos versos memorizam as suas mais profundas raízes, sendo, por isso mesmo, de subido valor e incontornáveis nos estudos etnológicos melhor elaborados.

Já Almeida Garrett, nas palavras de Campo Monteiro, dizia que, de bom grado, " trocaria toda a sua obra por uma dada quadra popular, descendo, ele próprio, ao seio do povo, escutando as suas trovas, inquirindo das suas lendas, auscultando minuciosamente o palpitar do seu coração"...

Aqui ficam algumas:

Vem livrar-me com teus olhos,
Que eu por eles me perdi;
Dá-me a vida com teus beijos,
Já que por eles morri.

Se os ricos bem soubessem
o que custa a trabalhar,
davam da sua riqueza
A quem a pode ganhar.

Dizes que as minhas mãos picam,
Ao pé das tuas mimosas,
Também as roseiras picam
A quem vai colher as rosas.

Passaste, não me falaste,
Homem de pouca palavra!
Se eu prometesse e faltasse,
Eu de homem me desnegava.

Eu venho não sei de aonde,
Bradando não sei por quem,
Chamo ninguém me responde,
Olho não vejo ninguém.

Quem tiver filhas no mundo
Não fale das malfadadas,
Porque as filhas da desgraça
Também nasceram honradas.

Boa erva é o poejo
Que se deita na açorda;
Racha-me a cara com beijos,
Tem cautela, não me morda

Foste dizer mal de mim
Lá fora da minha terra;
Ficaram-te conhecendo,
Eu fiquei sendo quem era.

Fui à praia dos amantes,
Embarquei, fui ter a Beja,
Hei-de amar-te como d' antes,
Por muitos terem inveja.

As palavras e as razões,
O mal é principiá-las,
São tantas as reflexões,
Que o melhor é deixá-las.

Que figura faz um pobre
Ao pé de quem muito tem?
A pobreza e a miséria
Não deixam brilhar ninguém.

Eu hei-de pôr uma loja
D' aguardente e de café;
Ateimar com quem ateima
É remar contra a maré.

Aguarela e texto de Leonel Borrela

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Beja querida


"Beja querida" é o título de uma letra que ouvimos cantar, mais de uma vez, perto de Odivelas, aquando da construção da barragem homónima, há cerca de pouco mais de 40 anos.

Próximo do local de construção da barragem, nas imediações do estaleiro, surgiu espontaneamente, entre o escasso arvoredo, um acampamento disperso de gente que procurava emprego ou uma oportunidade de negócio, dando lugar a uma feira diária onde se vendia de tudo um pouco.
Se não havia poeira, havia lama, sem um meio-termo que se livrasse das duas. A terra era, por vezes, nos piores momentos, simultaneamente um braseiro e um dilúvio, secava na roupa e cortava os corpos, mas quase ninguém parava ou, aparentemente, se importava com as condições indignas da sua vida… a não ser quando um homem macilento tocava acordeão e cantava várias modas, principalmente a de Beja, então, ouviam-no atentos, em silêncio, fumavam um cigarro e bebiam um copo de vinho. Era um momento mágico em que a dura labuta deixava de existir. Alguns sorriam, nostálgicos; outros reprimiam as lágrimas. Uma voz clara e uns versos tão simples tinham afinal uma virtude, traziam-lhes liberdade, embora fosse uma liberdade poética.
O muro foi subindo, a barragem fez-se, o artista improvisado desapareceu do nosso olhar, mas não a letra que cantava com tanta paixão:

Beja querida
Só a ti eu quero bem

Beja querida
És o lar de minha mãe

Beja a mais linda
És a flor do meu desejo

Beja tão bela
A mais formosa do nosso Alentejo


Leonel Borrela, Beja 28 de Abril de 2006 in Diário do Alentejo