quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Serpa, o moinho do Cubo.

“Contribuição para o estudo etnográfico dos moinhos do Guadiana”, pequena brochura publicada, em 1979, pelas Delegação Distrital do FAOJ e Casa de Cultura de Beja, foi não só, no âmbito das ciências sociais, a primeira tentativa séria de um começo e proposta de levantamento do património cultural do rio Guadiana, como também o fruto do trabalho de uma profícua equipa[1] que integrou, então muito mais jovens do que nós, Armando Galvão, Francisco Mosca, Jorge Amador e José M. Barnabé.
Tudo tem um princípio, tal como a secção emergente de Etnografia, constituída no final de 1978, sob a orientação de José Parreira Cortez, homem de cultura polifacetada – político, ensaísta, etnógrafo, artista plástico – a quem se deve a coordenação científica desse estudo preliminar que, infelizmente, para o concelho de Beja, não teve continuação… e já passaram quase trinta anos.
O estudo do moinho do Cubo, situado no concelho de Serpa, na margem esquerda da ribeira de Enxoé, a cerca de 550m da foz desta na margem esquerda do rio Guadiana, deveu-se ao seu bom estado de conservação e à circunstancia, já bastante rara, de ainda se encontrar em funcionamento.
Era, portanto, decisivo aproveitar tal acontecimento, estudá-lo e transmiti-lo aos vindouros, através da metodologia adequada, conforme se pode ler na introdução (p.6): “A execução do trabalho orientou-se da seguinte maneira: depois de se terem exposto na introdução as razões determinantes da escolha do assunto (como se fez atrás), num primeiro capítulo traça-se sucinto enquadramento histórico-social da acção molineira, dando nota da importância económica de que se revestia. No capítulo seguinte, relacionam-se todos os moinhos, ou seus vestígios, assinaláveis no percurso do rio Guadiana e dos seus afluentes, na área do Distrito de Beja, dando-se a sua localização através de carta geográfica. Já no terceiro capítulo procura-se fazer, a traços largos, uma descrição pormenorizada do moinho típico, particularizando, em concreto, o funcionamento do moinho do Cubo, situado próximo da foz da ribeira de Enxoé, afluente do rio Guadiana. O glossário dos termos utilizados, relativo às componentes do moinho e à actividade moageira na região, com que se termina este breve estudo, justifica-se pela importância que o elemento linguístico ocupa em trabalhos desta natureza, designadamente para avaliar graus de aculturação. Todos os termos foram recolhidos directamente e sujeitos a confirmação.”
O estudo refere a origem remota da actividade moageira ligada aos regimes dos rios e dos ventos, destacando a sua importância na economia medieval, nomeadamente a partir do século XII. Destaca os forais régios, registos notariais e da fazenda, entre muitos outros documentos existentes, por exemplo, nos arquivos municipais, a exigirem pesquisa urgente, onde abundam referencias ao papel económico desempenhado pelo moinho. Aborda os campos cerealíferos do Alentejo, a navegabilidade do rio Guadiana, excepto na área do Pulo do Lobo, e a solidez dos moinhos, cujas forma, dimensão e técnica construtiva, permitiram, até há pouco mais de 50 anos, a sua funcionalidade durante séculos. Da página 14 em diante descreve-se o seu funcionamento, onde, numa primeira fase, o saber de experiência feito, sempre aliado à economia de meios[2], habilitava o construtor, depois de analisadas as características do local, na escolha do melhor posicionamento do moinho face à disposição do açude, muro que ampara a água e que, pela sua dimensão e estruturas afins, condiciona tudo o resto. Contudo, estes moinhos do Guadiana, bastante sólidos, de grossas paredes abobadadas, diferem do moinho do Cubo, quase uma vulgar casa com telhado, justaposta e assente no sistema hidráulico, este, sim, desde a levada até ao poço e câmaras (poços é o nome correcto) dos rodízios, um notável trabalho de engenharia (provavelmente popular).
Dois desenhos ilustram, agora, em substituição de algumas das fotografias que integram o trabalho original, dois alçados do moinho: um, das “traseiras”, com duas condutas de água - vindas de uma extensa levada com cerca de 2km - sendo uma, a da direita, para enchimento do poço (2m de diâmetro x 3m de profundidade) destinado a proporcionar um poderoso jacto, concentrado pela setia, sobre as penas do rodízio, cujo movimento rotativo é solidariamente transmitido à mó superior através de um sistema constituído pela pela e pelo veio; a outra conduta, a da esquerda, canaliza a água, por um plano muito inclinado (45º), a alta velocidade, em direcção a outro poço de rodízio que acciona outro par de mós. Os outros desenhos ajudarão o leitor na compreensão do que for insuficientemente explicado.
Rodízio (roda hidráulica que tem lugar no poço sob a casa do moinho), conjunto de mós e moega (reservatório de cereal, alimentador das mós) (cf. pp.20-21), são alvo de descrição técnica pormenorizada. Os materiais utilizados nas mós, granito e mármore, sendo mais caro este, compensava, todavia, pela maior duração e qualidade da farinha. Através do olho da mó superior corria a ritmo certo (sincronizado pelo cadelo) os grãos de trigo provenientes da moega. O moleiro estava sempre atento à temperatura da farinha, procedendo com frequência à sua apalpação para avaliar da maior ou menor compressão e esmagamento dos grãos entre as duas mós. Se a farinha aquecia excessivamente, deteriorava-se e ficava com mau gosto, pelo que a solução seria subir a agulha, aliviando as mós (no trabalho publicado vem, como solução, descer a agulha, que é o contrário desta operação. Um engano arreliador que não prejudica de modo algum o excelente estudo).
A moega, reservatório do cereal, de formato tronco piramidal quadrangular, encaixa numa grade chamada burra, suspensa do tecto e da parede, por esticadores, e submete a sua preciosa funcionalidade (como se fizesse parte de um micro processador) às vibrações transmitidas pelo cadelo, aos saltitos sobre a mó de cima, à quelha (outra peça em suspensão a exigir correcções de inclinação através da palmatória) que por sua vez alimenta de grãos o olho da mó. Quando o trigo começa a faltar na moega entra em funcionamento a sirene chamada boneca: uma bóia de cortiça, posicionada no fundo da moega, à falta de trigo, solta-se, o fiel inclina-se e o chocalho de tiras de ferro, mais pesado, vai cair sobre a mó em movimento e tilintar fortemente até o moleiro ouvir e reabastecer o sistema. Elementar: umas ripas de madeira, arames (antes seriam cordas de sisal, de linho, ou outras, além de tiras de cabedal), muitos pontos de apoio, alavancas, sensibilidade e séculos de experiência.
Uma outra operação, considerada a mais trabalhosa para o moleiro é a da picadura. A superfície de trituração das mós não dura sempre, desgasta-se, pelo que é necessário proceder com frequência à sua picadura. Não haverá grande problema com a mó fixa que está sobre o poiso; mas já não é tão fácil, além de desmontar a mó de cima, que chega a pesar 700 ou 800Kg, virá-la ao contrário, para que a face de trabalho fique devidamente posicionada para ser picada. O moleiro inventou um método, uma sequência de procedimentos com os instrumentos adequados, que lhe permitem sozinho desmontar, virar e picar as mós. Levanta um lado da mó com a alavanca, coloca-lhe uma cunha, repete esta operação até puder colocar sob a mó duas roletas (rolos). A mó rola sobre a outra, para um dos lados e, com uma alavanca entalada no olho, o moleiro fá-la descair lentamente na vertical. A seguir, com a ajuda da mesma alavanca, a mó vai assentar, virada ao contrário, sobre o cavalo e a espera previamente posicionados. Então, com um ferro de tempera dura, o moleiro procede à picadura das mós, sempre testando a sua aspereza e a regularidade do trabalho. Quando as mós voltam a funcionar, há que realizar uns ajustes; a primeira farinha moída, vem com muitos resíduos de pedra, pelo que não se aproveita, dá-se aos animais.
Não se pretendeu reproduzir letra a letra o conteúdo das 28 páginas deste valioso estudo, o qual necessita de uma revisão atenta, destinada a eliminar algumas gaffes e imprecisões técnicas. Apesar de não constarem quaisquer dados bibliográficos (somente uma fonte primária[3], mas que não diz respeito ao moinho do Cubo), a lacuna não é importante dado que os trabalhos desta natureza se autentificam sobretudo através de entrevistas e da experiência directa e quotidiana[4]. A obra merece uma nova edição com texto melhorado e mais documentação iconográfica.
Na freguesia de Quintos, no concelho de Beja, há, a 3000m para sudeste, um moinho similar ao do Cubo. Situado na margem esquerda da ribeira de Cardeira, também a 550m da sua foz na margem direita do rio Guadiana, é conhecido como a Azenha do Poço (um poço em tudo semelhante ao do moinho do Cubo), conservando ainda as poderosas estruturas das condutas, levada (já muito incompleta, arruinada, e em parte desaparecida, provavelmente, sob as obras da linha do caminho de ferro Beja-Moura) e a casa das mós. Segundo a Carta Corográfica de Portugal, escala 1:50000, as coordenadas Gauss são: P-109,9; M-239,7; Z-55.

BORRELA, Leonel - "Iconografia Pacense - Serpa, o Moinho do Cubo" in Diário do Alentejo de (data exacta a colocar). Cf. web.me.com/ie.msa/Moinhos-de-Agua.../page2.html

[1] Deixe o nosso leitor passar uma pontinha de vaidade pela colaboração técnico-artística que então lhe dedicámos. Nesta crónica apenas acrescentámos os dois desenhos perspécticos gerais do moinho: o alçado das condutas de água provenientes da levada, visto da antiga estrada Beja-Serpa, e o lado contrário, por onde se escoa a água e se acede aos rodízios.
[2] Justiça seja feita ao nosso saudoso amigo professor Jerónimo Aiveca que tantas vezes nos alertou, desde o tempo do Centro de Juventude, em Beja, corria o ano de 1973, para a vantagem material (que se reflectia no físico e no espiritual) que havia em realizar o que quer que fosse de um modo prático e funcional, com economia de meios.
[3] Trata-se da reprodução de um Tombo de 1577 (Cf. p.7) , versando um contracto e trespasse dos Moinhos da Cardeira, entre a condessa da Vidigueira, D. Guiomar de Vilhena e o Convento de Nossa Senhora das Relíquias.
[4] Já não está entre nós, mas foi o senhor António Maria Diogo, moleiro e proprietário do moinho do Cubo, que mostrou e explicou à equipa de estudo os segredos do seu moinho. Bem haja.