Antes da “quimera” do ouro…
Vamos,
desde já, alertar o leitor para o título que damos a esta crónica, Antes da “quimera” do ouro, pois poderá
parecer a quem leu a muito bem elaborada crónica da semana passada, A quimera do ouro, da autoria do jornalista
brasileiro Duda Guennes, que lhe estamos a fazer algum reparo e não é essa a
nossa intenção. Dado que, em Beja, isto é, em S. Miguel do Pinheiro,
nasceu um dos bandeirantes que, como todos os outros que o antecederam e
procederam, na mira do ouro, maior contribuição deu para o alargamento e
consolidação do território brasileiro, vale a pena tecer algumas considerações
acerca do seu tempo.
António Raposo Tavares, filho do
provedor da Fazenda Fernão Vieira Tavares e de Francisca Pinheiro da Costa
Bravo, mais conhecido como “O Bandeirante”, assim mesmo, bem definido – O
Bandeirante – nasceu em S.
Miguel do Pinheiro, no distrito de Beja, em 1598 e faleceu, em São Paulo , no ano de 1659.
Na senda dos anteriores bandeirantes não descobriu o almejado ouro brasileiro,
considerado uma quimera, fantasia de loucos que procuravam num território inóspito
aquilo que ainda ninguém tinha por ali encontrado e nem os indígenas ostentavam
tal riqueza. Mas, na verdade, o ouro de quimérico nada tinha, estava ainda
somente protegido (da ambição) na natureza e alguns dos seus importantes filões
acabariam por ser descobertos, um pouco mais tarde - em 1682, por Manuel da
Borba Gato, genro de Fernão Dias Pais Leme, ambos bandeirantes, como nos relata
Duda Guennes - abastança que Raposo Tavares não chegou a conhecer.
Ora, Raposo Tavares viveu num
período bastante conturbado da História da Europa, cujas parcelas territoriais,
diferenciadas pela língua, pela religião, pela própria cultura, reivindicavam
para si próprias um governo independente de pressões externas e tanto lutavam
entre si contra o reaparecimento de um império como o disputavam. De 1618 a 1648, grassou a
nefasta e fratricida Guerra dos Trinta Anos, que opôs, no essencial, os países
católicos do sul aos protestantes do norte, com a Espanha, cujo domínio se
estendeu a Portugal (1580-1640), aos principais territórios da Itália e à
Holanda (as Províncias Unidas), a assumir a defesa intransigente do seu império
católico na Europa e fora dela; depois, entre 1640 e 1668, Portugal luta com
sucesso, pela sua independência, com o apoio de tropas francesas, inglesas e
alemãs, contra a hegemonia espanhola, despendendo, em simultâneo, um esforço
titânico e somas avultadas (que não possuíamos, razão por que íamos penhorando
o Reino) na recuperação das suas antigas possessões, repartidas entre
holandeses, espanhóis, e aqueles que estrategicamente nos auxiliavam, claramente
mais no sentido de enfraquecer o poder espanhol do que reabilitar a nossa
sempre cobiçada influência.
Em poucas mas suficientes palavras,
Túlio Espanca[1], diz-nos que Raposo
Tavares tornou-se “uma das mais prestigiadas figuras históricas da expansão
ultramarina naquele Estado [Brasil], onde teve acção preponderante nas
capitanias de S. Vicente, Rio Grande do Sul, S. Salvador da Baía e Pernambuco.
Aclamador de D. João IV em S. Paulo , com o conde de
Monsanto, combatente esforçado nas campanhas contra os holandeses foi, pelo Restaurador, nomeado mestre de
campo-general e, entre 1648-51, chefiando uma bandeira, atravessou o Paraguai
até à confluência de Junaperés, percorreu o Amazonas até alcançar Jurupá e
realizando, com esta viagem, um dos mais extraordinários descobrimentos do
território da América do Sul [percorreu mais de 10.000km].” Uma nota curiosa: a
célebre guia de Beja de 1950, editada pelo município, ignora O Bandeirante. Razão tinham alguns
autores em lamentar o facto de tamanha figura ser mais conhecida no Brasil do
na sua cidade natal.
A estátua de bronze d`O Bandeirante
[ver ilustrações][2], com cerca de 3,5m de
altura sobre pedestal, com 2,5m, de blocos pétreos de S. Pedro de Pomares,
erguida no centro da rotunda, no extremo da Avenida do Brasil, defronte da
Rodoviária Nacional, em Beja, pode considerar-se o melhor monumento
comemorativo da cidade de Beja. Deve-se aos esforços de uma Comissão Executiva
constituída por portugueses radicados no Brasil e brasileiros admiradores do
glorioso bandeirante. Luís Morrone, artista paulista, foi o seu escultor. Entre
muito publico, no dia 15 de Agosto de 1966, procedeu-se à sua inauguração, “na
presença dos Presidentes da República e da Câmara Municipal de Beja, Bispo de
Beja e Ministro dos Negócios Estrangeiros, respectivamente, Contra-Almirante
Américo Thomaz, Dr. Joaquim Black Vilhena Freire de Andrade, D. Manuel dos Santos
Rocha e Dr. Franco Nogueira; Dr. Santos Júnior, Ministro do Interior;
embaixador do Brasil; Dr. Marques Fragoso, governador civil do Distrito; Dr.
António Stott Howorth, comendadores Abílio Brenha da Fontoura e Francisco
Maldonado, senador José Emírio de Morais e o escritor Victorino Nemésio que
proferiu um discurso ao acto.” (ESPANCA,1992: 141). Este discurso nunca o
vimos, mas, além de conhecermos outros, destacamos aquele que foi concebido e
publicado pela pessoa que mais se preocupou com o sucesso da homenagem ao
bandeirante bejense, o Dr. António Stott Howorth com quem ainda privámos. Dele,
possuímos a pequena brochura, Discurso
comemorativo da inauguração da estátua do Bandeirante António Raposo Tavares,
com dedicatória manuscrita ao seu amigo Cândido Marrecas, datada de 20 de Maio
de 1968. Eis alguns dos seus extractos:
“Com uns vinte
anos de idade [António Raposo Tavares] acompanha seu pai ao Brasil quando o
último é nomeado vedor da fazenda da Capitania de S. Vicente.
Integra-se no
movimento das bandeiras, grupos dinâmicos de homens com carácter
simultaneamente civil e militar que devassaram, povoaram, e civilizaram o
Brasil nos séculos XVI, XVII e XVIII.
[…] A meu ver
uma boa parte do movimento das bandeiras, a partir de 1580 e anterior a 1640,
está possuído de uma forte dose do espírito de reacção a Castela que com muito
maior dificuldade se poderia manifestar em Portugal e que, só em 1637, com os
acontecimentos de Évora, logo em alastramento por todo o Alentejo, eclodiu.
O bandeirismo
como movimento geral da primeira metade do século XVII constitui pois, para o
mundo da língua portuguesa, como que uma pré-restauração de Portugal. […] Na
formação das fronteiras do Brasil foi António Raposo Tavares o seu mais
formidável campeão[…] já com os altos cargos de juiz ordinário e de ouvidor da
capitania de S. Vicente, contribuiu decisivamente para fazer abortar uma
tentativa de autonomia que pretendeu coroar rei um prestigioso colono
castelhano de nome Amador Bueno ao ser conhecida a restauração de Portugal.”
A sede do ouro foi responsável pelos
mais diversos jogos do poder e em muito contribuiu para distorcer os bons
costumes e a moral [ninguém nos encomendou o discurso]. Para quem trabalhava
com ele directamente era uma tentação que fazia esquecer tudo o resto, mesmo
que esse resto, analisada a culpa, fosse a pena de morte. De qualquer modo, de
entre os que roubaram ou tentaram roubar e aqueles que o esbanjaram, venha o
diabo e escolha. Até uma Rainha ficava de olhos toldados perante o
desaparcimento ou uso indevido de “uns gramas” de ouro, como nos narra
Daehnhardt nas suas excelentes e praticamente desconhecidas “Páginas secretas
da História de Portugal”[3]: “Em
1693, D. Catarina de Bragança, irmã do rei D. Pedro II [que fora duque de Beja
e chefe da Casa do Infantado, sediada em Beja], depois da morte do seu marido,
o rei Carlos II da Grã-Bretanha, regressa a Portugal e, passado algum tempo,
assume a regência do reino, pois o irmão anda envolvido na Guerra da Sucessão
de Espanha, ao lado do exercito do Arquiduque da Áustria. No ano de 1704, no
dia 7 de Agosto, é enviada de Lisboa para o Brasil e destinada ao
Superintendente das Minas do Ouro, O Desembargador José Vaz Pinto, uma carta
surpreendente, assinada pela Rainha
[regente em Portugal e que fora rainha da Grã-Bretanha], a qual constituía a
sentença de morte de Paschoal Ferreira, oficial de latoeiro que desviara ouro e
fabricara cunhos falsos para amoedar e pôr em circulação. A
punição de um crime desta natureza tinha de ser rápida e só o Rei de Portugal e
o Vice-Rei da Índia tinham o direito de confirmar e mandar executar sentenças
de morte. Como este caso aconteceu no Brasil, foi necessário a reconfirmação
régia, aqui prestada pela Rainha […]”.
Daehnhardt (1998: 103) descreve
ainda a colonização holandesa do Brasil, iniciada por Moritz von Nassau, a
partir de 1624. “Em 1641 já dominavam o Maranhão e Ceará, cunhavam moeda
própria e organizavam uma rede de transportes internos, coisa nunca vista.”
Entre 1644 e 1654 os holandeses são expulsos do Brasil, Portugal luta em
diversas frentes, por todo o império, e a Holanda não desarma, pretende
declarar guerra a Portugal, caso não lhe sejam reconhecidos direitos sobre o comercio brasileiro. O
assunto é complicado e, mais uma vez, perdemos na assinatura de um tratado de
paz com a Holanda, em 6 de Agosto de 1661, cujo teor foi mantido em segredo. A exigência
holandesa foi de, seguindo Daehnhardt, “quatro milhões de cruzados ou sejam
oito milhões de florins holandeses”, com um prazo de dezasseis anos para pagar
esta quantia em prestações, que podem ser pagas em dinheiro de “contado” ou em
“assucar”, tabaco ou sal de Setúbal. É também exigida a devolução de todas as
peças de artilharia holandesas que tinham sido tomadas no Brasil. Como penhor,
Portugal teve de reconhecer a soberania holandesa sobre duas das principais
feitorias portuguesas na costa do Malabar, nomeadamente Cochin e Cananor. Diz
Daehnhardt, com razão, que na política torna-se por vezes necessário”engolir
sapos vivos”! [onde é que já ouvimos isto?].
Do mal, o menor: na transição dos
séculos XVII para XVIII, a descoberta de ouro e diamantes vieram compensar essa
enorme perda e humilhação. Mas foi uma riqueza esbanjada, desrespeitada, pelo
muito que poderia ter desenvolvido o país. O resto da Europa aproveitou bem a
matéria-prima de que fomos boçais intermediários, pois não chegámos nunca a
mercadores. Razão tinha o padre António Vieira para se revoltar e denunciar com
frequência ao Rei, as atrocidades cometidas pelos colonos em relação ao
espírito das missões jesuíticas, que de alguma forma respeitavam os indígenas e
viam-nos como gente cristã, sobre a qual não se devia exercer a escravatura, e
também às razias perpetradas pelas bandeiras quando se deslocavam pelo interior.
Raposo Tavares, o maior de todos os bandeirantes, finalizou os seus dias,
doente, magro, pouco tempo resistiu à saída do Amazonas; outros consolidaram os
seus passos e aos poucos foram reconhecendo que o Brasil afinal eram diversos
“Brasis”, havia diferentes “nações”[4] – Tupinambás,
Nheengaibás, Poquiguirás, Catingas, etc., identificadas pelo padre António
Vieira que nunca desistiu, apesar do ódio dos colonos, de proteger conforme
melhor podia e sabia.
Nota: Este artigo, agora revisto, foi publicado, fora da nossa coluna semanal "ICONOGRAFIA PACENSE", no Diário do Alentejo, em 2010(?). Passam neste ano de 2016, 50 anos sobre a edição da revista comemorativa da inauguração da estátua do Bandeirante. Hoje no Museu Regional de Beja há uma peça de teatro sobre António Vieira... tudo se conjuga. LBorrela
[1] ESPANCA, Túlio –
“Inventário Artístico de Portugal – Distrito de Beja”. Lisboa: Academia
Nacional de Belas-Artes, 1992. Vol.I, pp.141-142
[2] AAVV - “Beja 1966” . Beja: CMB, 1966. Br. Pp64
[3] DAEHNHARDT, Rainer –
“Páginas secretas da História de Portugal”. Lisboa: Publicações Quipu, 1998.
p.338
[4]
GRECO, Julieta de Oliveira lo –“O Padre António Vieira – diplomata, politico e
profeta”. In História de Portugal,
(dir. João Medina). Amadora: Ediclube, 2004. Vol.VIII, p.409.