domingo, 17 de abril de 2016

O BANDEIRANTE E AS NAÇÕES DO PADRE ANTONIO VIEIRA



Antes da “quimera” do ouro…


            Vamos, desde já, alertar o leitor para o título que damos a esta crónica, Antes da “quimera” do ouro, pois poderá parecer a quem leu a muito bem elaborada crónica da semana passada, A quimera do ouro, da autoria do jornalista brasileiro Duda Guennes, que lhe estamos a fazer algum reparo e não é essa a nossa intenção. Dado que, em Beja, isto é, em S. Miguel do Pinheiro, nasceu um dos bandeirantes que, como todos os outros que o antecederam e procederam, na mira do ouro, maior contribuição deu para o alargamento e consolidação do território brasileiro, vale a pena tecer algumas considerações acerca do seu tempo.
            António Raposo Tavares, filho do provedor da Fazenda Fernão Vieira Tavares e de Francisca Pinheiro da Costa Bravo, mais conhecido como “O Bandeirante”, assim mesmo, bem definido – O Bandeirante – nasceu em S. Miguel do Pinheiro, no distrito de Beja, em 1598 e faleceu, em São Paulo, no ano de 1659. Na senda dos anteriores bandeirantes não descobriu o almejado ouro brasileiro, considerado uma quimera, fantasia de loucos que procuravam num território inóspito aquilo que ainda ninguém tinha por ali encontrado e nem os indígenas ostentavam tal riqueza. Mas, na verdade, o ouro de quimérico nada tinha, estava ainda somente protegido (da ambição) na natureza e alguns dos seus importantes filões acabariam por ser descobertos, um pouco mais tarde - em 1682, por Manuel da Borba Gato, genro de Fernão Dias Pais Leme, ambos bandeirantes, como nos relata Duda Guennes - abastança que Raposo Tavares não chegou a conhecer.
            Ora, Raposo Tavares viveu num período bastante conturbado da História da Europa, cujas parcelas territoriais, diferenciadas pela língua, pela religião, pela própria cultura, reivindicavam para si próprias um governo independente de pressões externas e tanto lutavam entre si contra o reaparecimento de um império como o disputavam. De 1618 a 1648, grassou a nefasta e fratricida Guerra dos Trinta Anos, que opôs, no essencial, os países católicos do sul aos protestantes do norte, com a Espanha, cujo domínio se estendeu a Portugal (1580-1640), aos principais territórios da Itália e à Holanda (as Províncias Unidas), a assumir a defesa intransigente do seu império católico na Europa e fora dela; depois, entre 1640 e 1668, Portugal luta com sucesso, pela sua independência, com o apoio de tropas francesas, inglesas e alemãs, contra a hegemonia espanhola, despendendo, em simultâneo, um esforço titânico e somas avultadas (que não possuíamos, razão por que íamos penhorando o Reino) na recuperação das suas antigas possessões, repartidas entre holandeses, espanhóis, e aqueles que estrategicamente nos auxiliavam, claramente mais no sentido de enfraquecer o poder espanhol do que reabilitar a nossa sempre cobiçada influência.
            Em poucas mas suficientes palavras, Túlio Espanca[1], diz-nos que Raposo Tavares tornou-se “uma das mais prestigiadas figuras históricas da expansão ultramarina naquele Estado [Brasil], onde teve acção preponderante nas capitanias de S. Vicente, Rio Grande do Sul, S. Salvador da Baía e Pernambuco.
            Aclamador de D. João IV em S. Paulo, com o conde de Monsanto, combatente esforçado nas campanhas contra os holandeses foi, pelo Restaurador, nomeado mestre de campo-general e, entre 1648-51, chefiando uma bandeira, atravessou o Paraguai até à confluência de Junaperés, percorreu o Amazonas até alcançar Jurupá e realizando, com esta viagem, um dos mais extraordinários descobrimentos do território da América do Sul [percorreu mais de 10.000km].” Uma nota curiosa: a célebre guia de Beja de 1950, editada pelo município, ignora O Bandeirante. Razão tinham alguns autores em lamentar o facto de tamanha figura ser mais conhecida no Brasil do na sua cidade natal.
            A estátua de bronze d`O Bandeirante [ver ilustrações][2], com cerca de 3,5m de altura sobre pedestal, com 2,5m, de blocos pétreos de S. Pedro de Pomares, erguida no centro da rotunda, no extremo da Avenida do Brasil, defronte da Rodoviária Nacional, em Beja, pode considerar-se o melhor monumento comemorativo da cidade de Beja. Deve-se aos esforços de uma Comissão Executiva constituída por portugueses radicados no Brasil e brasileiros admiradores do glorioso bandeirante. Luís Morrone, artista paulista, foi o seu escultor. Entre muito publico, no dia 15 de Agosto de 1966, procedeu-se à sua inauguração, “na presença dos Presidentes da República e da Câmara Municipal de Beja, Bispo de Beja e Ministro dos Negócios Estrangeiros, respectivamente, Contra-Almirante Américo Thomaz, Dr. Joaquim Black Vilhena Freire de Andrade, D. Manuel dos Santos Rocha e Dr. Franco Nogueira; Dr. Santos Júnior, Ministro do Interior; embaixador do Brasil; Dr. Marques Fragoso, governador civil do Distrito; Dr. António Stott Howorth, comendadores Abílio Brenha da Fontoura e Francisco Maldonado, senador José Emírio de Morais e o escritor Victorino Nemésio que proferiu um discurso ao acto.” (ESPANCA,1992: 141). Este discurso nunca o vimos, mas, além de conhecermos outros, destacamos aquele que foi concebido e publicado pela pessoa que mais se preocupou com o sucesso da homenagem ao bandeirante bejense, o Dr. António Stott Howorth com quem ainda privámos. Dele, possuímos a pequena brochura, Discurso comemorativo da inauguração da estátua do Bandeirante António Raposo Tavares, com dedicatória manuscrita ao seu amigo Cândido Marrecas, datada de 20 de Maio de 1968. Eis alguns dos seus extractos:
“Com uns vinte anos de idade [António Raposo Tavares] acompanha seu pai ao Brasil quando o último é nomeado vedor da fazenda da Capitania de S. Vicente.
Integra-se no movimento das bandeiras, grupos dinâmicos de homens com carácter simultaneamente civil e militar que devassaram, povoaram, e civilizaram o Brasil nos séculos XVI, XVII e XVIII.
[…] A meu ver uma boa parte do movimento das bandeiras, a partir de 1580 e anterior a 1640, está possuído de uma forte dose do espírito de reacção a Castela que com muito maior dificuldade se poderia manifestar em Portugal e que, só em 1637, com os acontecimentos de Évora, logo em alastramento por todo o Alentejo, eclodiu.
O bandeirismo como movimento geral da primeira metade do século XVII constitui pois, para o mundo da língua portuguesa, como que uma pré-restauração de Portugal. […] Na formação das fronteiras do Brasil foi António Raposo Tavares o seu mais formidável campeão[…] já com os altos cargos de juiz ordinário e de ouvidor da capitania de S. Vicente, contribuiu decisivamente para fazer abortar uma tentativa de autonomia que pretendeu coroar rei um prestigioso colono castelhano de nome Amador Bueno ao ser conhecida a restauração de Portugal.”
            A sede do ouro foi responsável pelos mais diversos jogos do poder e em muito contribuiu para distorcer os bons costumes e a moral [ninguém nos encomendou o discurso]. Para quem trabalhava com ele directamente era uma tentação que fazia esquecer tudo o resto, mesmo que esse resto, analisada a culpa, fosse a pena de morte. De qualquer modo, de entre os que roubaram ou tentaram roubar e aqueles que o esbanjaram, venha o diabo e escolha. Até uma Rainha ficava de olhos toldados perante o desaparcimento ou uso indevido de “uns gramas” de ouro, como nos narra Daehnhardt nas suas excelentes e praticamente desconhecidas “Páginas secretas da História de Portugal”[3]: “Em 1693, D. Catarina de Bragança, irmã do rei D. Pedro II [que fora duque de Beja e chefe da Casa do Infantado, sediada em Beja], depois da morte do seu marido, o rei Carlos II da Grã-Bretanha, regressa a Portugal e, passado algum tempo, assume a regência do reino, pois o irmão anda envolvido na Guerra da Sucessão de Espanha, ao lado do exercito do Arquiduque da Áustria. No ano de 1704, no dia 7 de Agosto, é enviada de Lisboa para o Brasil e destinada ao Superintendente das Minas do Ouro, O Desembargador José Vaz Pinto, uma carta surpreendente, assinada pela Rainha [regente em Portugal e que fora rainha da Grã-Bretanha], a qual constituía a sentença de morte de Paschoal Ferreira, oficial de latoeiro que desviara ouro e fabricara cunhos falsos para amoedar e pôr em circulação. A punição de um crime desta natureza tinha de ser rápida e só o Rei de Portugal e o Vice-Rei da Índia tinham o direito de confirmar e mandar executar sentenças de morte. Como este caso aconteceu no Brasil, foi necessário a reconfirmação régia, aqui prestada pela Rainha […]”.
            Daehnhardt (1998: 103) descreve ainda a colonização holandesa do Brasil, iniciada por Moritz von Nassau, a partir de 1624. “Em 1641 já dominavam o Maranhão e Ceará, cunhavam moeda própria e organizavam uma rede de transportes internos, coisa nunca vista.” Entre 1644 e 1654 os holandeses são expulsos do Brasil, Portugal luta em diversas frentes, por todo o império, e a Holanda não desarma, pretende declarar guerra a Portugal, caso não lhe sejam reconhecidos  direitos sobre o comercio brasileiro. O assunto é complicado e, mais uma vez, perdemos na assinatura de um tratado de paz com a Holanda, em 6 de Agosto de 1661, cujo teor foi mantido em segredo. A exigência holandesa foi de, seguindo Daehnhardt, “quatro milhões de cruzados ou sejam oito milhões de florins holandeses”, com um prazo de dezasseis anos para pagar esta quantia em prestações, que podem ser pagas em dinheiro de “contado” ou em “assucar”, tabaco ou sal de Setúbal. É também exigida a devolução de todas as peças de artilharia holandesas que tinham sido tomadas no Brasil. Como penhor, Portugal teve de reconhecer a soberania holandesa sobre duas das principais feitorias portuguesas na costa do Malabar, nomeadamente Cochin e Cananor. Diz Daehnhardt, com razão, que na política torna-se por vezes necessário”engolir sapos vivos”! [onde é que já ouvimos isto?].
            Do mal, o menor: na transição dos séculos XVII para XVIII, a descoberta de ouro e diamantes vieram compensar essa enorme perda e humilhação. Mas foi uma riqueza esbanjada, desrespeitada, pelo muito que poderia ter desenvolvido o país. O resto da Europa aproveitou bem a matéria-prima de que fomos boçais intermediários, pois não chegámos nunca a mercadores. Razão tinha o padre António Vieira para se revoltar e denunciar com frequência ao Rei, as atrocidades cometidas pelos colonos em relação ao espírito das missões jesuíticas, que de alguma forma respeitavam os indígenas e viam-nos como gente cristã, sobre a qual não se devia exercer a escravatura, e também às razias perpetradas pelas bandeiras quando se deslocavam pelo interior. Raposo Tavares, o maior de todos os bandeirantes, finalizou os seus dias, doente, magro, pouco tempo resistiu à saída do Amazonas; outros consolidaram os seus passos e aos poucos foram reconhecendo que o Brasil afinal eram diversos “Brasis”, havia diferentes “nações”[4] – Tupinambás, Nheengaibás, Poquiguirás, Catingas, etc., identificadas pelo padre António Vieira que nunca desistiu, apesar do ódio dos colonos, de proteger conforme melhor podia e sabia.

Nota: Este artigo, agora revisto, foi publicado, fora da nossa coluna semanal "ICONOGRAFIA PACENSE", no Diário do Alentejo, em 2010(?). Passam neste ano de 2016, 50 anos sobre a edição da revista comemorativa da inauguração da estátua do Bandeirante. Hoje no Museu Regional de Beja há uma peça de teatro sobre António Vieira... tudo se conjuga. LBorrela
  
           
           

           






[1] ESPANCA, Túlio – “Inventário Artístico de Portugal – Distrito de Beja”. Lisboa: Academia Nacional de Belas-Artes, 1992. Vol.I, pp.141-142
[2] AAVV - “Beja 1966”. Beja: CMB, 1966.  Br. Pp64
[3] DAEHNHARDT, Rainer – “Páginas secretas da História de Portugal”. Lisboa: Publicações Quipu, 1998. p.338
[4] GRECO, Julieta de Oliveira lo –“O Padre António Vieira – diplomata, politico e profeta”. In História de Portugal, (dir. João Medina). Amadora: Ediclube, 2004. Vol.VIII, p.409.

domingo, 14 de julho de 2013

As pinturas da quinta da Faleira, Beja.

Este pastel sobre o complexo moageiro - levada, aqueduto e moinho com poço -  da Quinta da Faleira, freguesia de Penedo Gordo, concelho de Beja, foi realizado em 1977, numa altura em que toda a área ainda era muito arborizada - havia uma extensa mata de eucaliptos. A quinta da Faleira tinha pinturas murais de gosto neoclássico e romântico, actualmente quase desaparecidas. Há poucos anos dedicámos-lhe um artigo publicado no Diário do Alentejo:

http://arquivodigital.cm-beja.pt/ArquivoDigital/winlibimg.aspx?skey=&doc=63470&img=27032

segunda-feira, 1 de julho de 2013

sábado, 18 de setembro de 2010

Entre a ermida de São Lourenço e a Toca da Galeana









Entre a ermida de São Lourenço, situada no alto de um esporão rochoso, no extremo sudeste da freguesia de Pedrógão, concelho da Vidigueira, e os íngremes penedos da Toca da Galiana, no extremo noroeste da freguesia de Brinches, concelho de Serpa, corre agora mais lento, num longo percurso sinuoso, o rio Guadiana (ver ilustrações). Não será um local idílico, do género paradisíaco, como um jardim entre muros, fórmula física quase inalterável destinada a proporcionar a felicidade na Terra, com os olhos postos no Céu, mas é um sítio especial, bastante singular, sob as vertentes paisagística, geológica e histórica. Felizmente o paredão da barragem de Pedrógão quedou-se a montante, ainda visível, porém, suficientemente longe para não macular a estranha beleza geográfica e o espírito do lugar, intenção propositada de que duvidamos, embora se reconheçam as preocupações culturais, cada vez mais frequentes e exigentes, que têm vindo a acompanhar os grandes empreendimentos, nomeadamente da EDIA.

A estória da Toca da Galiana é descrita (VIANA, Abel – “Notas históricas, arqueológicas e etnográficas do Baixo-Alentejo. In Arquivo de Beja. Beja: C.M.B., 1948. Vol.V, pp.3-62) como a lenda de uma moira que ali procurou refugio e eremitério para os seus desgostos de amor - se a lenda não é assim, anda lá perto. Afinal, como uma forte corrente que une a lenda à verdade, no Alentejo, quase já não há tempo nem espaço para conter os desaires do coração, quanto mais para tratá-los. Veja-se, em Moura, a moira Salúquia, que abriu as portas ao seu suicídio, depois de as ter aberto ao inimigo julgando que era o amado; veja-se, de Beja, partindo de uma freira, Mariana Alcoforado, a sua paixão sem limite, exposta indiscretamente ao mundo.

Claro que a Toca da Galiana, ou melhor, os vários rochedos sobrepostos e justapostos, com vãos entre si como se dessem acesso a grandes cavernas, elevados a mais de vinte metros, sobre a margem esquerda do Guadiana, podem originar milhentas histórias, todavia, existem provas de que, além dos homens actuais, medievos e romanos, também o homem pré-histórico conheceu as vantagens e a segurança que a natureza lhe proporcionava e utilizou-a, por vezes adaptando-a à sua necessidade. Não é por acaso que os arqueólogos referem a permanência ao longo do rio de comunidades humanas pré-históricas, do final do paleolítico, utilizando artefactos semelhantes aos da região do Languedoc, no sul de França (Cf. Exposição arqueológica da Colecção Fernando Nunes Ribeiro, no Museu Regional de Beja. 2º piso).

A água do rio era a fonte da vida, e ainda é, era o local de convergência de todos os seres vivos, garantia de sobrevivência das espécies. Ao longo de milénios os locais que a possuíam eram, sob determinadas circunstâncias geográficas, locais sagrados, produto de uma dialéctica precoce entre o homem e a natureza. Ainda hoje, o ambiente paisagístico que tentamos descrever, é cercado, na margem esquerda, por megalitos naturais, fantásticos maciços rochosos de volume e formato variados, retratando bem o papel escultórico que a erosão provocou quando o rio se espraiava numa cota mais elevada há muitas centenas de milhares de anos. Do mesmo modo, na margem direita, a de Pedrógão (a sua origem toponímica não deixa duvidas quanto à matéria prima da região), defronte da Toca da Galiana, subsistem grandes formações rochosas (mais sacrificadas há alguns anos pela exploração de várias pedreiras) e, também, vestígios da ancestral ocupação humana. Mais para sul e temporalmente mais próximo de nós, distingue-se a ermida de São Lourenço, o santo cujo martírio passou pelas grades incandescentes de uma fornalha, indício da sacralização cristã de um lugar onde, provavelmente, se identificaram escórias de fundição metalífera do cobre e do ferro, as quais pertencerão a um povoado da Idade do Ferro (c.800-200 a.C.). Ventura bem mais antiga do que a dos vestígios deste povoado será um conjunto de incisões, aparentemente de procedência humana, aberto nas penedias que emergem neste local do Guadiana, a montante da foz da ribeira de Odearça e dos moinhos de Besteiros e da Abóbada, e a jusante da Toca da Galiana.

A garganta estreita do Guadiana, apertada entre rochedos, é o sinal geológico de uma enorme catarata de um curso de água persistente, que ao fim de milhões de anos, entre a Galiana e S. Lourenço, anulou a sua queda, suavizando e uniformizando o seu leito, e espraiando-se por fim, aquando das cheias, na extensa e rica lezíria que originou. Podemos provavelmente observar aqui um dos fenómenos de encurtamento do rio, chamado cut-off, pois as características orográficas do contorno da lezíria parecem indicar a supressão de um canal mais antigo do rio. Enfim, este pequeno percurso do Guadiana é, como vimos, um local de eleição para os mais diversos estudos, da natureza à história. Sobre a margem esquerda subsiste o que parece ter sido um abrigo pré-histórico e, na direcção de Pedrógão, laboram ainda fornos artesanais para produção de carvão, cuja combustão lenta e incompleta, liberta novelos de fumo acinzentado e branco, de mistura com o cheiro a lenha queimada, envolvendo de maior mistério, principalmente ao entardecer, a ancestralidade do lugar. Os afloramentos rochosos ganham vida na nossa imaginação, enquanto uma réstia de luz vai desaparecendo e acentuando o abismo entre as duas margens. Por fim, as grandes massas pétreas desaparecem totalmente… na Toca da Galiana, no “abrigo pré-histórico”, encontrando o escuro e a solidão. A “estrela” da tarde, Vénus, paira sobre o pequeno santuário de S. Lourenço e a Lua cheia indica-nos o caminho de regresso. Que nostalgia de lugar…



Leonel Borrela



sexta-feira, 28 de maio de 2010

Um milagre em S. Pedro de Pomares, Baleizão

Dos reis e rainhas da Idade Média europeia, nomeadamente de Portugal, contam-se tantas histórias surpreendentes que, por vezes, não se distingue com nitidez a separação entre a verdade e a lenda. O nosso primeiro rei poeta, lavrador e bastante instruído, D. Dinis, foi protagonista, segundo a tradição, de um acontecimento sui generis em terras do Alentejo, região bravia que no seu tempo nem tampouco era ainda conhecida como de Entre Tejo e Odiana a prolongar-se até ao Reino do Algarve. Nesse tempo o território era grande, pouco populoso, coberto de matas e quase não havia caminhos transitáveis e seguros, sendo os cursos de água mais apropriados para viajar do que as vias romanas há muito abandonadas.
D. Dinis, andou por terras de Beja, nos confins da freguesia de Baleizão, adjacentes às de Pedrógão e de Selmes, no concelho da Vidigueira. Hoje reconhece-se no local a persistência da ocupação humana desde a antiguidade, pois são várias as estações arqueológicas dos períodos pré-histórico, romano e paleocristão, por escavar e é natural que muitos dos montes e quintas actuais – Cegonha, S. Pedro, Rabadoa, Lamarim e Paço Inchado, entre outros - se localizem sobre outros restos urbanos do período islâmico e do início do domínio português. Mas falemos do milagre e do local que o comemora.
Se do tempo de D. Dinis pudéssemos datar com precisão os milagres das Rosas e o seu, evocador de S. Luís, bispo de Tolosa, talvez compreendêssemos melhor a razão porque fechou o rei os olhos à provisão que sua santa mulher, D. Isabel, distribuía entre os pobres. Se deixou passar, em primeiro lugar, o milagre das Rosas, criou, como contrapartida (estas coisas não se sabem, imaginam-se), as condições para sobreviver ao ataque fatal que mais tarde o poderia ter condenado. Se o milagre que o salvou foi anterior ao milagre das Rosas, então percebemos melhor o seu fechar de olhos ao “desvio” virtuoso dos bens da fazenda real e chegarmos à feliz conclusão de que um milagre nunca vem só – como diz, aliás, o adágio popular: Fazer bem sem olhar a quem ou Mãos que dão mãos que recebem.
Conta-se assim: Andava o rei numa das suas muitas montarias, em Novembro de 1294, entre pequenas florações rochosas, mato e chaparral, para os lados de S. Pedro de Pomares, no lugar de Belmonte, na margem esquerda da ribeira de S. Pedro que desagua na ribeira de Odearça, afluente do rio Guadiana, quando o seu cavalo se ergueu tão rapidamente e de tal modo assustado que o projectou violentamente no solo. Passado aquele momento, o monarca recobrou o sangue frio e tentou assenhorear-se da situação e o que viu ainda o estarreceu muito mais, à sua frente sobre as patas traseiras, um enorme urso pardo que gesticulava grossas patas dianteiras de unhas afiadas, aprestando-se, via-se-lhe nos olhos sanguinolentos e nos urros ensurdecedores que emitia, para lhe dar o golpe fatal. O cavalo, ferido, pôs-se em fuga, os súbditos, embora não muito afastados, viam gorados os seus esforços para protegerem o rei, pois o local, apesar de plano, era mesmo um embrenhado matagal de cobertura arbórea dispersa e arbustiva. Mas D. Dinis, sem tempo para desbravar o terreno, não esteve com poesias e, antes que a besta o atacasse, tomou ele valentemente a dianteira. Invocou, em seu auxílio, o nome de S. Luís, bispo de Tolosa, recobrando um ânimo e uma força tão desmesurada, para um homem normal, que de um só golpe certeiro, desferido com o seu punhal, prostrou de imediato o animal, ferido de morte – milagre!
Em honra de tal milagre mandou sua majestade construir uma capela na igreja do extinto convento de S. Francisco (actual Pousada), na cidade de Beja. Dessa capela, dedicada a S. Luís, já nada existe, pois a igreja foi totalmente reformada no século XVIII. Todavia, no local do milagre, deixou-nos o rei, segundo reza a tradição e a história, a ermida de S. Pedro de Pomares, construção que conserva ainda na sua estrutura elementos arquitectónicos dos períodos visigótico e posteriores, dos séculos XIII e XIV. Os próprios capitéis do nártex do templo de nave única são peculiares pelas cabeças invertidas e barbadas que ostentam. A volumetria actual do edifício aponta para reformas parciais realizadas nos séculos XVI e XVII, de feição maneirista. Porém, a data de 1716, é a que se refere numa sepultura onde jazem os últimos benfeitores do templo. No interior destaca-se ainda, embora de feitura seiscentista ou setecentista, um quadro a óleo sobre tela alusivo ao dito milagre “S. Luís salvando o rei D. Dinis do ataque do urso”.
No lado sul e sudoeste da ermida ainda se vêem as casas de apoio aos romeiros, lavradores e todo povo da região, que em número copioso concorriam na devoção a S. Luís, então também venerado em capela própria na herdade da Rabadoa que no século XVIII havia sido a cabeça do morgadio dos Tomazes, os benfeitores da ermida de S. Pedro.
Recordando os sinais deixados pelo corcel de D. Fuas Roupinho no extremo do promontório sobre o mar da Nazaré, também na proximidade de S. Pedro se podem observar, sobre a rocha da nascente da Fonte de S. Luís, as “patas gravadas” do cavalo de D. Dinis, afinal, apenas sinais dos homens do neolítico que devem ter conhecido mais ursos do que o rei divinamente protegido, além outras espécies animais hoje praticamente extintas. Em Portugal extinguiram-se por volta dos séculos XVII ou XVIII e algumas noticias que os dão como vistos nos séculos XIX ou XX têm a ver com as migrações temporárias originárias do norte de Espanha, país onde as áreas da cordilheira Cantábria e dos Pirinéus protegem as poucas dezenas de ursos ainda existentes na península ibérica.

Leonel Borrela

Nota: Esta crónica veio publicada a pp.35-38 do Boletim Informativo da Federação Alentejana de Caçadores, nº11, de Maio de 2006. Uma revista de qualidade, de distribuição gratuita, que não aparece há algum tempo.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Serpa, o moinho do Cubo.

“Contribuição para o estudo etnográfico dos moinhos do Guadiana”, pequena brochura publicada, em 1979, pelas Delegação Distrital do FAOJ e Casa de Cultura de Beja, foi não só, no âmbito das ciências sociais, a primeira tentativa séria de um começo e proposta de levantamento do património cultural do rio Guadiana, como também o fruto do trabalho de uma profícua equipa[1] que integrou, então muito mais jovens do que nós, Armando Galvão, Francisco Mosca, Jorge Amador e José M. Barnabé.
Tudo tem um princípio, tal como a secção emergente de Etnografia, constituída no final de 1978, sob a orientação de José Parreira Cortez, homem de cultura polifacetada – político, ensaísta, etnógrafo, artista plástico – a quem se deve a coordenação científica desse estudo preliminar que, infelizmente, para o concelho de Beja, não teve continuação… e já passaram quase trinta anos.
O estudo do moinho do Cubo, situado no concelho de Serpa, na margem esquerda da ribeira de Enxoé, a cerca de 550m da foz desta na margem esquerda do rio Guadiana, deveu-se ao seu bom estado de conservação e à circunstancia, já bastante rara, de ainda se encontrar em funcionamento.
Era, portanto, decisivo aproveitar tal acontecimento, estudá-lo e transmiti-lo aos vindouros, através da metodologia adequada, conforme se pode ler na introdução (p.6): “A execução do trabalho orientou-se da seguinte maneira: depois de se terem exposto na introdução as razões determinantes da escolha do assunto (como se fez atrás), num primeiro capítulo traça-se sucinto enquadramento histórico-social da acção molineira, dando nota da importância económica de que se revestia. No capítulo seguinte, relacionam-se todos os moinhos, ou seus vestígios, assinaláveis no percurso do rio Guadiana e dos seus afluentes, na área do Distrito de Beja, dando-se a sua localização através de carta geográfica. Já no terceiro capítulo procura-se fazer, a traços largos, uma descrição pormenorizada do moinho típico, particularizando, em concreto, o funcionamento do moinho do Cubo, situado próximo da foz da ribeira de Enxoé, afluente do rio Guadiana. O glossário dos termos utilizados, relativo às componentes do moinho e à actividade moageira na região, com que se termina este breve estudo, justifica-se pela importância que o elemento linguístico ocupa em trabalhos desta natureza, designadamente para avaliar graus de aculturação. Todos os termos foram recolhidos directamente e sujeitos a confirmação.”
O estudo refere a origem remota da actividade moageira ligada aos regimes dos rios e dos ventos, destacando a sua importância na economia medieval, nomeadamente a partir do século XII. Destaca os forais régios, registos notariais e da fazenda, entre muitos outros documentos existentes, por exemplo, nos arquivos municipais, a exigirem pesquisa urgente, onde abundam referencias ao papel económico desempenhado pelo moinho. Aborda os campos cerealíferos do Alentejo, a navegabilidade do rio Guadiana, excepto na área do Pulo do Lobo, e a solidez dos moinhos, cujas forma, dimensão e técnica construtiva, permitiram, até há pouco mais de 50 anos, a sua funcionalidade durante séculos. Da página 14 em diante descreve-se o seu funcionamento, onde, numa primeira fase, o saber de experiência feito, sempre aliado à economia de meios[2], habilitava o construtor, depois de analisadas as características do local, na escolha do melhor posicionamento do moinho face à disposição do açude, muro que ampara a água e que, pela sua dimensão e estruturas afins, condiciona tudo o resto. Contudo, estes moinhos do Guadiana, bastante sólidos, de grossas paredes abobadadas, diferem do moinho do Cubo, quase uma vulgar casa com telhado, justaposta e assente no sistema hidráulico, este, sim, desde a levada até ao poço e câmaras (poços é o nome correcto) dos rodízios, um notável trabalho de engenharia (provavelmente popular).
Dois desenhos ilustram, agora, em substituição de algumas das fotografias que integram o trabalho original, dois alçados do moinho: um, das “traseiras”, com duas condutas de água - vindas de uma extensa levada com cerca de 2km - sendo uma, a da direita, para enchimento do poço (2m de diâmetro x 3m de profundidade) destinado a proporcionar um poderoso jacto, concentrado pela setia, sobre as penas do rodízio, cujo movimento rotativo é solidariamente transmitido à mó superior através de um sistema constituído pela pela e pelo veio; a outra conduta, a da esquerda, canaliza a água, por um plano muito inclinado (45º), a alta velocidade, em direcção a outro poço de rodízio que acciona outro par de mós. Os outros desenhos ajudarão o leitor na compreensão do que for insuficientemente explicado.
Rodízio (roda hidráulica que tem lugar no poço sob a casa do moinho), conjunto de mós e moega (reservatório de cereal, alimentador das mós) (cf. pp.20-21), são alvo de descrição técnica pormenorizada. Os materiais utilizados nas mós, granito e mármore, sendo mais caro este, compensava, todavia, pela maior duração e qualidade da farinha. Através do olho da mó superior corria a ritmo certo (sincronizado pelo cadelo) os grãos de trigo provenientes da moega. O moleiro estava sempre atento à temperatura da farinha, procedendo com frequência à sua apalpação para avaliar da maior ou menor compressão e esmagamento dos grãos entre as duas mós. Se a farinha aquecia excessivamente, deteriorava-se e ficava com mau gosto, pelo que a solução seria subir a agulha, aliviando as mós (no trabalho publicado vem, como solução, descer a agulha, que é o contrário desta operação. Um engano arreliador que não prejudica de modo algum o excelente estudo).
A moega, reservatório do cereal, de formato tronco piramidal quadrangular, encaixa numa grade chamada burra, suspensa do tecto e da parede, por esticadores, e submete a sua preciosa funcionalidade (como se fizesse parte de um micro processador) às vibrações transmitidas pelo cadelo, aos saltitos sobre a mó de cima, à quelha (outra peça em suspensão a exigir correcções de inclinação através da palmatória) que por sua vez alimenta de grãos o olho da mó. Quando o trigo começa a faltar na moega entra em funcionamento a sirene chamada boneca: uma bóia de cortiça, posicionada no fundo da moega, à falta de trigo, solta-se, o fiel inclina-se e o chocalho de tiras de ferro, mais pesado, vai cair sobre a mó em movimento e tilintar fortemente até o moleiro ouvir e reabastecer o sistema. Elementar: umas ripas de madeira, arames (antes seriam cordas de sisal, de linho, ou outras, além de tiras de cabedal), muitos pontos de apoio, alavancas, sensibilidade e séculos de experiência.
Uma outra operação, considerada a mais trabalhosa para o moleiro é a da picadura. A superfície de trituração das mós não dura sempre, desgasta-se, pelo que é necessário proceder com frequência à sua picadura. Não haverá grande problema com a mó fixa que está sobre o poiso; mas já não é tão fácil, além de desmontar a mó de cima, que chega a pesar 700 ou 800Kg, virá-la ao contrário, para que a face de trabalho fique devidamente posicionada para ser picada. O moleiro inventou um método, uma sequência de procedimentos com os instrumentos adequados, que lhe permitem sozinho desmontar, virar e picar as mós. Levanta um lado da mó com a alavanca, coloca-lhe uma cunha, repete esta operação até puder colocar sob a mó duas roletas (rolos). A mó rola sobre a outra, para um dos lados e, com uma alavanca entalada no olho, o moleiro fá-la descair lentamente na vertical. A seguir, com a ajuda da mesma alavanca, a mó vai assentar, virada ao contrário, sobre o cavalo e a espera previamente posicionados. Então, com um ferro de tempera dura, o moleiro procede à picadura das mós, sempre testando a sua aspereza e a regularidade do trabalho. Quando as mós voltam a funcionar, há que realizar uns ajustes; a primeira farinha moída, vem com muitos resíduos de pedra, pelo que não se aproveita, dá-se aos animais.
Não se pretendeu reproduzir letra a letra o conteúdo das 28 páginas deste valioso estudo, o qual necessita de uma revisão atenta, destinada a eliminar algumas gaffes e imprecisões técnicas. Apesar de não constarem quaisquer dados bibliográficos (somente uma fonte primária[3], mas que não diz respeito ao moinho do Cubo), a lacuna não é importante dado que os trabalhos desta natureza se autentificam sobretudo através de entrevistas e da experiência directa e quotidiana[4]. A obra merece uma nova edição com texto melhorado e mais documentação iconográfica.
Na freguesia de Quintos, no concelho de Beja, há, a 3000m para sudeste, um moinho similar ao do Cubo. Situado na margem esquerda da ribeira de Cardeira, também a 550m da sua foz na margem direita do rio Guadiana, é conhecido como a Azenha do Poço (um poço em tudo semelhante ao do moinho do Cubo), conservando ainda as poderosas estruturas das condutas, levada (já muito incompleta, arruinada, e em parte desaparecida, provavelmente, sob as obras da linha do caminho de ferro Beja-Moura) e a casa das mós. Segundo a Carta Corográfica de Portugal, escala 1:50000, as coordenadas Gauss são: P-109,9; M-239,7; Z-55.

BORRELA, Leonel - "Iconografia Pacense - Serpa, o Moinho do Cubo" in Diário do Alentejo de (data exacta a colocar). Cf. web.me.com/ie.msa/Moinhos-de-Agua.../page2.html

[1] Deixe o nosso leitor passar uma pontinha de vaidade pela colaboração técnico-artística que então lhe dedicámos. Nesta crónica apenas acrescentámos os dois desenhos perspécticos gerais do moinho: o alçado das condutas de água provenientes da levada, visto da antiga estrada Beja-Serpa, e o lado contrário, por onde se escoa a água e se acede aos rodízios.
[2] Justiça seja feita ao nosso saudoso amigo professor Jerónimo Aiveca que tantas vezes nos alertou, desde o tempo do Centro de Juventude, em Beja, corria o ano de 1973, para a vantagem material (que se reflectia no físico e no espiritual) que havia em realizar o que quer que fosse de um modo prático e funcional, com economia de meios.
[3] Trata-se da reprodução de um Tombo de 1577 (Cf. p.7) , versando um contracto e trespasse dos Moinhos da Cardeira, entre a condessa da Vidigueira, D. Guiomar de Vilhena e o Convento de Nossa Senhora das Relíquias.
[4] Já não está entre nós, mas foi o senhor António Maria Diogo, moleiro e proprietário do moinho do Cubo, que mostrou e explicou à equipa de estudo os segredos do seu moinho. Bem haja.