sábado, 18 de setembro de 2010

Entre a ermida de São Lourenço e a Toca da Galeana









Entre a ermida de São Lourenço, situada no alto de um esporão rochoso, no extremo sudeste da freguesia de Pedrógão, concelho da Vidigueira, e os íngremes penedos da Toca da Galiana, no extremo noroeste da freguesia de Brinches, concelho de Serpa, corre agora mais lento, num longo percurso sinuoso, o rio Guadiana (ver ilustrações). Não será um local idílico, do género paradisíaco, como um jardim entre muros, fórmula física quase inalterável destinada a proporcionar a felicidade na Terra, com os olhos postos no Céu, mas é um sítio especial, bastante singular, sob as vertentes paisagística, geológica e histórica. Felizmente o paredão da barragem de Pedrógão quedou-se a montante, ainda visível, porém, suficientemente longe para não macular a estranha beleza geográfica e o espírito do lugar, intenção propositada de que duvidamos, embora se reconheçam as preocupações culturais, cada vez mais frequentes e exigentes, que têm vindo a acompanhar os grandes empreendimentos, nomeadamente da EDIA.

A estória da Toca da Galiana é descrita (VIANA, Abel – “Notas históricas, arqueológicas e etnográficas do Baixo-Alentejo. In Arquivo de Beja. Beja: C.M.B., 1948. Vol.V, pp.3-62) como a lenda de uma moira que ali procurou refugio e eremitério para os seus desgostos de amor - se a lenda não é assim, anda lá perto. Afinal, como uma forte corrente que une a lenda à verdade, no Alentejo, quase já não há tempo nem espaço para conter os desaires do coração, quanto mais para tratá-los. Veja-se, em Moura, a moira Salúquia, que abriu as portas ao seu suicídio, depois de as ter aberto ao inimigo julgando que era o amado; veja-se, de Beja, partindo de uma freira, Mariana Alcoforado, a sua paixão sem limite, exposta indiscretamente ao mundo.

Claro que a Toca da Galiana, ou melhor, os vários rochedos sobrepostos e justapostos, com vãos entre si como se dessem acesso a grandes cavernas, elevados a mais de vinte metros, sobre a margem esquerda do Guadiana, podem originar milhentas histórias, todavia, existem provas de que, além dos homens actuais, medievos e romanos, também o homem pré-histórico conheceu as vantagens e a segurança que a natureza lhe proporcionava e utilizou-a, por vezes adaptando-a à sua necessidade. Não é por acaso que os arqueólogos referem a permanência ao longo do rio de comunidades humanas pré-históricas, do final do paleolítico, utilizando artefactos semelhantes aos da região do Languedoc, no sul de França (Cf. Exposição arqueológica da Colecção Fernando Nunes Ribeiro, no Museu Regional de Beja. 2º piso).

A água do rio era a fonte da vida, e ainda é, era o local de convergência de todos os seres vivos, garantia de sobrevivência das espécies. Ao longo de milénios os locais que a possuíam eram, sob determinadas circunstâncias geográficas, locais sagrados, produto de uma dialéctica precoce entre o homem e a natureza. Ainda hoje, o ambiente paisagístico que tentamos descrever, é cercado, na margem esquerda, por megalitos naturais, fantásticos maciços rochosos de volume e formato variados, retratando bem o papel escultórico que a erosão provocou quando o rio se espraiava numa cota mais elevada há muitas centenas de milhares de anos. Do mesmo modo, na margem direita, a de Pedrógão (a sua origem toponímica não deixa duvidas quanto à matéria prima da região), defronte da Toca da Galiana, subsistem grandes formações rochosas (mais sacrificadas há alguns anos pela exploração de várias pedreiras) e, também, vestígios da ancestral ocupação humana. Mais para sul e temporalmente mais próximo de nós, distingue-se a ermida de São Lourenço, o santo cujo martírio passou pelas grades incandescentes de uma fornalha, indício da sacralização cristã de um lugar onde, provavelmente, se identificaram escórias de fundição metalífera do cobre e do ferro, as quais pertencerão a um povoado da Idade do Ferro (c.800-200 a.C.). Ventura bem mais antiga do que a dos vestígios deste povoado será um conjunto de incisões, aparentemente de procedência humana, aberto nas penedias que emergem neste local do Guadiana, a montante da foz da ribeira de Odearça e dos moinhos de Besteiros e da Abóbada, e a jusante da Toca da Galiana.

A garganta estreita do Guadiana, apertada entre rochedos, é o sinal geológico de uma enorme catarata de um curso de água persistente, que ao fim de milhões de anos, entre a Galiana e S. Lourenço, anulou a sua queda, suavizando e uniformizando o seu leito, e espraiando-se por fim, aquando das cheias, na extensa e rica lezíria que originou. Podemos provavelmente observar aqui um dos fenómenos de encurtamento do rio, chamado cut-off, pois as características orográficas do contorno da lezíria parecem indicar a supressão de um canal mais antigo do rio. Enfim, este pequeno percurso do Guadiana é, como vimos, um local de eleição para os mais diversos estudos, da natureza à história. Sobre a margem esquerda subsiste o que parece ter sido um abrigo pré-histórico e, na direcção de Pedrógão, laboram ainda fornos artesanais para produção de carvão, cuja combustão lenta e incompleta, liberta novelos de fumo acinzentado e branco, de mistura com o cheiro a lenha queimada, envolvendo de maior mistério, principalmente ao entardecer, a ancestralidade do lugar. Os afloramentos rochosos ganham vida na nossa imaginação, enquanto uma réstia de luz vai desaparecendo e acentuando o abismo entre as duas margens. Por fim, as grandes massas pétreas desaparecem totalmente… na Toca da Galiana, no “abrigo pré-histórico”, encontrando o escuro e a solidão. A “estrela” da tarde, Vénus, paira sobre o pequeno santuário de S. Lourenço e a Lua cheia indica-nos o caminho de regresso. Que nostalgia de lugar…



Leonel Borrela



sexta-feira, 28 de maio de 2010

Um milagre em S. Pedro de Pomares, Baleizão

Dos reis e rainhas da Idade Média europeia, nomeadamente de Portugal, contam-se tantas histórias surpreendentes que, por vezes, não se distingue com nitidez a separação entre a verdade e a lenda. O nosso primeiro rei poeta, lavrador e bastante instruído, D. Dinis, foi protagonista, segundo a tradição, de um acontecimento sui generis em terras do Alentejo, região bravia que no seu tempo nem tampouco era ainda conhecida como de Entre Tejo e Odiana a prolongar-se até ao Reino do Algarve. Nesse tempo o território era grande, pouco populoso, coberto de matas e quase não havia caminhos transitáveis e seguros, sendo os cursos de água mais apropriados para viajar do que as vias romanas há muito abandonadas.
D. Dinis, andou por terras de Beja, nos confins da freguesia de Baleizão, adjacentes às de Pedrógão e de Selmes, no concelho da Vidigueira. Hoje reconhece-se no local a persistência da ocupação humana desde a antiguidade, pois são várias as estações arqueológicas dos períodos pré-histórico, romano e paleocristão, por escavar e é natural que muitos dos montes e quintas actuais – Cegonha, S. Pedro, Rabadoa, Lamarim e Paço Inchado, entre outros - se localizem sobre outros restos urbanos do período islâmico e do início do domínio português. Mas falemos do milagre e do local que o comemora.
Se do tempo de D. Dinis pudéssemos datar com precisão os milagres das Rosas e o seu, evocador de S. Luís, bispo de Tolosa, talvez compreendêssemos melhor a razão porque fechou o rei os olhos à provisão que sua santa mulher, D. Isabel, distribuía entre os pobres. Se deixou passar, em primeiro lugar, o milagre das Rosas, criou, como contrapartida (estas coisas não se sabem, imaginam-se), as condições para sobreviver ao ataque fatal que mais tarde o poderia ter condenado. Se o milagre que o salvou foi anterior ao milagre das Rosas, então percebemos melhor o seu fechar de olhos ao “desvio” virtuoso dos bens da fazenda real e chegarmos à feliz conclusão de que um milagre nunca vem só – como diz, aliás, o adágio popular: Fazer bem sem olhar a quem ou Mãos que dão mãos que recebem.
Conta-se assim: Andava o rei numa das suas muitas montarias, em Novembro de 1294, entre pequenas florações rochosas, mato e chaparral, para os lados de S. Pedro de Pomares, no lugar de Belmonte, na margem esquerda da ribeira de S. Pedro que desagua na ribeira de Odearça, afluente do rio Guadiana, quando o seu cavalo se ergueu tão rapidamente e de tal modo assustado que o projectou violentamente no solo. Passado aquele momento, o monarca recobrou o sangue frio e tentou assenhorear-se da situação e o que viu ainda o estarreceu muito mais, à sua frente sobre as patas traseiras, um enorme urso pardo que gesticulava grossas patas dianteiras de unhas afiadas, aprestando-se, via-se-lhe nos olhos sanguinolentos e nos urros ensurdecedores que emitia, para lhe dar o golpe fatal. O cavalo, ferido, pôs-se em fuga, os súbditos, embora não muito afastados, viam gorados os seus esforços para protegerem o rei, pois o local, apesar de plano, era mesmo um embrenhado matagal de cobertura arbórea dispersa e arbustiva. Mas D. Dinis, sem tempo para desbravar o terreno, não esteve com poesias e, antes que a besta o atacasse, tomou ele valentemente a dianteira. Invocou, em seu auxílio, o nome de S. Luís, bispo de Tolosa, recobrando um ânimo e uma força tão desmesurada, para um homem normal, que de um só golpe certeiro, desferido com o seu punhal, prostrou de imediato o animal, ferido de morte – milagre!
Em honra de tal milagre mandou sua majestade construir uma capela na igreja do extinto convento de S. Francisco (actual Pousada), na cidade de Beja. Dessa capela, dedicada a S. Luís, já nada existe, pois a igreja foi totalmente reformada no século XVIII. Todavia, no local do milagre, deixou-nos o rei, segundo reza a tradição e a história, a ermida de S. Pedro de Pomares, construção que conserva ainda na sua estrutura elementos arquitectónicos dos períodos visigótico e posteriores, dos séculos XIII e XIV. Os próprios capitéis do nártex do templo de nave única são peculiares pelas cabeças invertidas e barbadas que ostentam. A volumetria actual do edifício aponta para reformas parciais realizadas nos séculos XVI e XVII, de feição maneirista. Porém, a data de 1716, é a que se refere numa sepultura onde jazem os últimos benfeitores do templo. No interior destaca-se ainda, embora de feitura seiscentista ou setecentista, um quadro a óleo sobre tela alusivo ao dito milagre “S. Luís salvando o rei D. Dinis do ataque do urso”.
No lado sul e sudoeste da ermida ainda se vêem as casas de apoio aos romeiros, lavradores e todo povo da região, que em número copioso concorriam na devoção a S. Luís, então também venerado em capela própria na herdade da Rabadoa que no século XVIII havia sido a cabeça do morgadio dos Tomazes, os benfeitores da ermida de S. Pedro.
Recordando os sinais deixados pelo corcel de D. Fuas Roupinho no extremo do promontório sobre o mar da Nazaré, também na proximidade de S. Pedro se podem observar, sobre a rocha da nascente da Fonte de S. Luís, as “patas gravadas” do cavalo de D. Dinis, afinal, apenas sinais dos homens do neolítico que devem ter conhecido mais ursos do que o rei divinamente protegido, além outras espécies animais hoje praticamente extintas. Em Portugal extinguiram-se por volta dos séculos XVII ou XVIII e algumas noticias que os dão como vistos nos séculos XIX ou XX têm a ver com as migrações temporárias originárias do norte de Espanha, país onde as áreas da cordilheira Cantábria e dos Pirinéus protegem as poucas dezenas de ursos ainda existentes na península ibérica.

Leonel Borrela

Nota: Esta crónica veio publicada a pp.35-38 do Boletim Informativo da Federação Alentejana de Caçadores, nº11, de Maio de 2006. Uma revista de qualidade, de distribuição gratuita, que não aparece há algum tempo.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Serpa, o moinho do Cubo.

“Contribuição para o estudo etnográfico dos moinhos do Guadiana”, pequena brochura publicada, em 1979, pelas Delegação Distrital do FAOJ e Casa de Cultura de Beja, foi não só, no âmbito das ciências sociais, a primeira tentativa séria de um começo e proposta de levantamento do património cultural do rio Guadiana, como também o fruto do trabalho de uma profícua equipa[1] que integrou, então muito mais jovens do que nós, Armando Galvão, Francisco Mosca, Jorge Amador e José M. Barnabé.
Tudo tem um princípio, tal como a secção emergente de Etnografia, constituída no final de 1978, sob a orientação de José Parreira Cortez, homem de cultura polifacetada – político, ensaísta, etnógrafo, artista plástico – a quem se deve a coordenação científica desse estudo preliminar que, infelizmente, para o concelho de Beja, não teve continuação… e já passaram quase trinta anos.
O estudo do moinho do Cubo, situado no concelho de Serpa, na margem esquerda da ribeira de Enxoé, a cerca de 550m da foz desta na margem esquerda do rio Guadiana, deveu-se ao seu bom estado de conservação e à circunstancia, já bastante rara, de ainda se encontrar em funcionamento.
Era, portanto, decisivo aproveitar tal acontecimento, estudá-lo e transmiti-lo aos vindouros, através da metodologia adequada, conforme se pode ler na introdução (p.6): “A execução do trabalho orientou-se da seguinte maneira: depois de se terem exposto na introdução as razões determinantes da escolha do assunto (como se fez atrás), num primeiro capítulo traça-se sucinto enquadramento histórico-social da acção molineira, dando nota da importância económica de que se revestia. No capítulo seguinte, relacionam-se todos os moinhos, ou seus vestígios, assinaláveis no percurso do rio Guadiana e dos seus afluentes, na área do Distrito de Beja, dando-se a sua localização através de carta geográfica. Já no terceiro capítulo procura-se fazer, a traços largos, uma descrição pormenorizada do moinho típico, particularizando, em concreto, o funcionamento do moinho do Cubo, situado próximo da foz da ribeira de Enxoé, afluente do rio Guadiana. O glossário dos termos utilizados, relativo às componentes do moinho e à actividade moageira na região, com que se termina este breve estudo, justifica-se pela importância que o elemento linguístico ocupa em trabalhos desta natureza, designadamente para avaliar graus de aculturação. Todos os termos foram recolhidos directamente e sujeitos a confirmação.”
O estudo refere a origem remota da actividade moageira ligada aos regimes dos rios e dos ventos, destacando a sua importância na economia medieval, nomeadamente a partir do século XII. Destaca os forais régios, registos notariais e da fazenda, entre muitos outros documentos existentes, por exemplo, nos arquivos municipais, a exigirem pesquisa urgente, onde abundam referencias ao papel económico desempenhado pelo moinho. Aborda os campos cerealíferos do Alentejo, a navegabilidade do rio Guadiana, excepto na área do Pulo do Lobo, e a solidez dos moinhos, cujas forma, dimensão e técnica construtiva, permitiram, até há pouco mais de 50 anos, a sua funcionalidade durante séculos. Da página 14 em diante descreve-se o seu funcionamento, onde, numa primeira fase, o saber de experiência feito, sempre aliado à economia de meios[2], habilitava o construtor, depois de analisadas as características do local, na escolha do melhor posicionamento do moinho face à disposição do açude, muro que ampara a água e que, pela sua dimensão e estruturas afins, condiciona tudo o resto. Contudo, estes moinhos do Guadiana, bastante sólidos, de grossas paredes abobadadas, diferem do moinho do Cubo, quase uma vulgar casa com telhado, justaposta e assente no sistema hidráulico, este, sim, desde a levada até ao poço e câmaras (poços é o nome correcto) dos rodízios, um notável trabalho de engenharia (provavelmente popular).
Dois desenhos ilustram, agora, em substituição de algumas das fotografias que integram o trabalho original, dois alçados do moinho: um, das “traseiras”, com duas condutas de água - vindas de uma extensa levada com cerca de 2km - sendo uma, a da direita, para enchimento do poço (2m de diâmetro x 3m de profundidade) destinado a proporcionar um poderoso jacto, concentrado pela setia, sobre as penas do rodízio, cujo movimento rotativo é solidariamente transmitido à mó superior através de um sistema constituído pela pela e pelo veio; a outra conduta, a da esquerda, canaliza a água, por um plano muito inclinado (45º), a alta velocidade, em direcção a outro poço de rodízio que acciona outro par de mós. Os outros desenhos ajudarão o leitor na compreensão do que for insuficientemente explicado.
Rodízio (roda hidráulica que tem lugar no poço sob a casa do moinho), conjunto de mós e moega (reservatório de cereal, alimentador das mós) (cf. pp.20-21), são alvo de descrição técnica pormenorizada. Os materiais utilizados nas mós, granito e mármore, sendo mais caro este, compensava, todavia, pela maior duração e qualidade da farinha. Através do olho da mó superior corria a ritmo certo (sincronizado pelo cadelo) os grãos de trigo provenientes da moega. O moleiro estava sempre atento à temperatura da farinha, procedendo com frequência à sua apalpação para avaliar da maior ou menor compressão e esmagamento dos grãos entre as duas mós. Se a farinha aquecia excessivamente, deteriorava-se e ficava com mau gosto, pelo que a solução seria subir a agulha, aliviando as mós (no trabalho publicado vem, como solução, descer a agulha, que é o contrário desta operação. Um engano arreliador que não prejudica de modo algum o excelente estudo).
A moega, reservatório do cereal, de formato tronco piramidal quadrangular, encaixa numa grade chamada burra, suspensa do tecto e da parede, por esticadores, e submete a sua preciosa funcionalidade (como se fizesse parte de um micro processador) às vibrações transmitidas pelo cadelo, aos saltitos sobre a mó de cima, à quelha (outra peça em suspensão a exigir correcções de inclinação através da palmatória) que por sua vez alimenta de grãos o olho da mó. Quando o trigo começa a faltar na moega entra em funcionamento a sirene chamada boneca: uma bóia de cortiça, posicionada no fundo da moega, à falta de trigo, solta-se, o fiel inclina-se e o chocalho de tiras de ferro, mais pesado, vai cair sobre a mó em movimento e tilintar fortemente até o moleiro ouvir e reabastecer o sistema. Elementar: umas ripas de madeira, arames (antes seriam cordas de sisal, de linho, ou outras, além de tiras de cabedal), muitos pontos de apoio, alavancas, sensibilidade e séculos de experiência.
Uma outra operação, considerada a mais trabalhosa para o moleiro é a da picadura. A superfície de trituração das mós não dura sempre, desgasta-se, pelo que é necessário proceder com frequência à sua picadura. Não haverá grande problema com a mó fixa que está sobre o poiso; mas já não é tão fácil, além de desmontar a mó de cima, que chega a pesar 700 ou 800Kg, virá-la ao contrário, para que a face de trabalho fique devidamente posicionada para ser picada. O moleiro inventou um método, uma sequência de procedimentos com os instrumentos adequados, que lhe permitem sozinho desmontar, virar e picar as mós. Levanta um lado da mó com a alavanca, coloca-lhe uma cunha, repete esta operação até puder colocar sob a mó duas roletas (rolos). A mó rola sobre a outra, para um dos lados e, com uma alavanca entalada no olho, o moleiro fá-la descair lentamente na vertical. A seguir, com a ajuda da mesma alavanca, a mó vai assentar, virada ao contrário, sobre o cavalo e a espera previamente posicionados. Então, com um ferro de tempera dura, o moleiro procede à picadura das mós, sempre testando a sua aspereza e a regularidade do trabalho. Quando as mós voltam a funcionar, há que realizar uns ajustes; a primeira farinha moída, vem com muitos resíduos de pedra, pelo que não se aproveita, dá-se aos animais.
Não se pretendeu reproduzir letra a letra o conteúdo das 28 páginas deste valioso estudo, o qual necessita de uma revisão atenta, destinada a eliminar algumas gaffes e imprecisões técnicas. Apesar de não constarem quaisquer dados bibliográficos (somente uma fonte primária[3], mas que não diz respeito ao moinho do Cubo), a lacuna não é importante dado que os trabalhos desta natureza se autentificam sobretudo através de entrevistas e da experiência directa e quotidiana[4]. A obra merece uma nova edição com texto melhorado e mais documentação iconográfica.
Na freguesia de Quintos, no concelho de Beja, há, a 3000m para sudeste, um moinho similar ao do Cubo. Situado na margem esquerda da ribeira de Cardeira, também a 550m da sua foz na margem direita do rio Guadiana, é conhecido como a Azenha do Poço (um poço em tudo semelhante ao do moinho do Cubo), conservando ainda as poderosas estruturas das condutas, levada (já muito incompleta, arruinada, e em parte desaparecida, provavelmente, sob as obras da linha do caminho de ferro Beja-Moura) e a casa das mós. Segundo a Carta Corográfica de Portugal, escala 1:50000, as coordenadas Gauss são: P-109,9; M-239,7; Z-55.

BORRELA, Leonel - "Iconografia Pacense - Serpa, o Moinho do Cubo" in Diário do Alentejo de (data exacta a colocar). Cf. web.me.com/ie.msa/Moinhos-de-Agua.../page2.html

[1] Deixe o nosso leitor passar uma pontinha de vaidade pela colaboração técnico-artística que então lhe dedicámos. Nesta crónica apenas acrescentámos os dois desenhos perspécticos gerais do moinho: o alçado das condutas de água provenientes da levada, visto da antiga estrada Beja-Serpa, e o lado contrário, por onde se escoa a água e se acede aos rodízios.
[2] Justiça seja feita ao nosso saudoso amigo professor Jerónimo Aiveca que tantas vezes nos alertou, desde o tempo do Centro de Juventude, em Beja, corria o ano de 1973, para a vantagem material (que se reflectia no físico e no espiritual) que havia em realizar o que quer que fosse de um modo prático e funcional, com economia de meios.
[3] Trata-se da reprodução de um Tombo de 1577 (Cf. p.7) , versando um contracto e trespasse dos Moinhos da Cardeira, entre a condessa da Vidigueira, D. Guiomar de Vilhena e o Convento de Nossa Senhora das Relíquias.
[4] Já não está entre nós, mas foi o senhor António Maria Diogo, moleiro e proprietário do moinho do Cubo, que mostrou e explicou à equipa de estudo os segredos do seu moinho. Bem haja.