sexta-feira, 28 de maio de 2010

Um milagre em S. Pedro de Pomares, Baleizão

Dos reis e rainhas da Idade Média europeia, nomeadamente de Portugal, contam-se tantas histórias surpreendentes que, por vezes, não se distingue com nitidez a separação entre a verdade e a lenda. O nosso primeiro rei poeta, lavrador e bastante instruído, D. Dinis, foi protagonista, segundo a tradição, de um acontecimento sui generis em terras do Alentejo, região bravia que no seu tempo nem tampouco era ainda conhecida como de Entre Tejo e Odiana a prolongar-se até ao Reino do Algarve. Nesse tempo o território era grande, pouco populoso, coberto de matas e quase não havia caminhos transitáveis e seguros, sendo os cursos de água mais apropriados para viajar do que as vias romanas há muito abandonadas.
D. Dinis, andou por terras de Beja, nos confins da freguesia de Baleizão, adjacentes às de Pedrógão e de Selmes, no concelho da Vidigueira. Hoje reconhece-se no local a persistência da ocupação humana desde a antiguidade, pois são várias as estações arqueológicas dos períodos pré-histórico, romano e paleocristão, por escavar e é natural que muitos dos montes e quintas actuais – Cegonha, S. Pedro, Rabadoa, Lamarim e Paço Inchado, entre outros - se localizem sobre outros restos urbanos do período islâmico e do início do domínio português. Mas falemos do milagre e do local que o comemora.
Se do tempo de D. Dinis pudéssemos datar com precisão os milagres das Rosas e o seu, evocador de S. Luís, bispo de Tolosa, talvez compreendêssemos melhor a razão porque fechou o rei os olhos à provisão que sua santa mulher, D. Isabel, distribuía entre os pobres. Se deixou passar, em primeiro lugar, o milagre das Rosas, criou, como contrapartida (estas coisas não se sabem, imaginam-se), as condições para sobreviver ao ataque fatal que mais tarde o poderia ter condenado. Se o milagre que o salvou foi anterior ao milagre das Rosas, então percebemos melhor o seu fechar de olhos ao “desvio” virtuoso dos bens da fazenda real e chegarmos à feliz conclusão de que um milagre nunca vem só – como diz, aliás, o adágio popular: Fazer bem sem olhar a quem ou Mãos que dão mãos que recebem.
Conta-se assim: Andava o rei numa das suas muitas montarias, em Novembro de 1294, entre pequenas florações rochosas, mato e chaparral, para os lados de S. Pedro de Pomares, no lugar de Belmonte, na margem esquerda da ribeira de S. Pedro que desagua na ribeira de Odearça, afluente do rio Guadiana, quando o seu cavalo se ergueu tão rapidamente e de tal modo assustado que o projectou violentamente no solo. Passado aquele momento, o monarca recobrou o sangue frio e tentou assenhorear-se da situação e o que viu ainda o estarreceu muito mais, à sua frente sobre as patas traseiras, um enorme urso pardo que gesticulava grossas patas dianteiras de unhas afiadas, aprestando-se, via-se-lhe nos olhos sanguinolentos e nos urros ensurdecedores que emitia, para lhe dar o golpe fatal. O cavalo, ferido, pôs-se em fuga, os súbditos, embora não muito afastados, viam gorados os seus esforços para protegerem o rei, pois o local, apesar de plano, era mesmo um embrenhado matagal de cobertura arbórea dispersa e arbustiva. Mas D. Dinis, sem tempo para desbravar o terreno, não esteve com poesias e, antes que a besta o atacasse, tomou ele valentemente a dianteira. Invocou, em seu auxílio, o nome de S. Luís, bispo de Tolosa, recobrando um ânimo e uma força tão desmesurada, para um homem normal, que de um só golpe certeiro, desferido com o seu punhal, prostrou de imediato o animal, ferido de morte – milagre!
Em honra de tal milagre mandou sua majestade construir uma capela na igreja do extinto convento de S. Francisco (actual Pousada), na cidade de Beja. Dessa capela, dedicada a S. Luís, já nada existe, pois a igreja foi totalmente reformada no século XVIII. Todavia, no local do milagre, deixou-nos o rei, segundo reza a tradição e a história, a ermida de S. Pedro de Pomares, construção que conserva ainda na sua estrutura elementos arquitectónicos dos períodos visigótico e posteriores, dos séculos XIII e XIV. Os próprios capitéis do nártex do templo de nave única são peculiares pelas cabeças invertidas e barbadas que ostentam. A volumetria actual do edifício aponta para reformas parciais realizadas nos séculos XVI e XVII, de feição maneirista. Porém, a data de 1716, é a que se refere numa sepultura onde jazem os últimos benfeitores do templo. No interior destaca-se ainda, embora de feitura seiscentista ou setecentista, um quadro a óleo sobre tela alusivo ao dito milagre “S. Luís salvando o rei D. Dinis do ataque do urso”.
No lado sul e sudoeste da ermida ainda se vêem as casas de apoio aos romeiros, lavradores e todo povo da região, que em número copioso concorriam na devoção a S. Luís, então também venerado em capela própria na herdade da Rabadoa que no século XVIII havia sido a cabeça do morgadio dos Tomazes, os benfeitores da ermida de S. Pedro.
Recordando os sinais deixados pelo corcel de D. Fuas Roupinho no extremo do promontório sobre o mar da Nazaré, também na proximidade de S. Pedro se podem observar, sobre a rocha da nascente da Fonte de S. Luís, as “patas gravadas” do cavalo de D. Dinis, afinal, apenas sinais dos homens do neolítico que devem ter conhecido mais ursos do que o rei divinamente protegido, além outras espécies animais hoje praticamente extintas. Em Portugal extinguiram-se por volta dos séculos XVII ou XVIII e algumas noticias que os dão como vistos nos séculos XIX ou XX têm a ver com as migrações temporárias originárias do norte de Espanha, país onde as áreas da cordilheira Cantábria e dos Pirinéus protegem as poucas dezenas de ursos ainda existentes na península ibérica.

Leonel Borrela

Nota: Esta crónica veio publicada a pp.35-38 do Boletim Informativo da Federação Alentejana de Caçadores, nº11, de Maio de 2006. Uma revista de qualidade, de distribuição gratuita, que não aparece há algum tempo.

4 comentários:

Maria Máxima Vaz disse...

Segundo Frei Francisco Brandão e o Historiador José Augusto de Sotto Mayor Pizarro, a capela que ficava no convento de S. Francisco, não foi construída devido ao milagre do urso, mas sim a outro anterior, e que terá sido S. Luís ter ressucitado um falcão ao rei.

Calandrónio disse...

Agradeço a informação cujo teor desconhecia. Vou tentar saber um pouco mais sobre o assunto. MUITO OBRIGADO, LB

Calandrónio disse...

Agradeço a informação cujo teor desconhecia. Vou tentar saber um pouco mais sobre o assunto. MUITO OBRIGADO, LB

Mario Baleizao Jr disse...

Obrigado pela bela estória. Interessa-me o que são histórias de Baleizão. Pelo que apurei, esta estória tem 2 versões: uma com um urso e outra com um javali. A versão do javali está em "Estâncias d'Arte e de Saudade", de Fialho de Almeida, Livraria Clássica Editora, 1921. Há uma referência a um painel de azulejo, invocativo do milagre, na igreja de São Pedro de Pomares. Não consegui imagem do painel de azulejo.